
Por Bruna Menelau Bezerra da Cunha
A Lei Complementar n.º 214, de 2025, inaugurou um novo regime tributário para as operações com combustíveis no Brasil, promovendo significativa reorganização da sujeição passiva. Nos artigos 176 e 177, a norma estabelece quem são os contribuintes do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), e em que condições se admite a responsabilidade solidária.
O artigo 176 define como contribuintes os agentes posicionados nos elos iniciais da cadeia: produtores nacionais de biocombustíveis, refinarias de petróleo, centrais de matéria-prima petroquímica (CPQ), unidades de processamento de gás natural (UPGN), formuladores de combustíveis, importadores e outros agentes autorizados. O §1º inclui o distribuidor que atua como importador, e o §2º equipara as cooperativas de etanol autorizadas aos produtores, ampliando o rol de contribuintes diretos.
A opção legislativa por tributar na origem reflete a adoção do regime monofásico, que visa simplificar a arrecadação e reduzir o potencial de inadimplemento fiscal. Nesse contexto, o artigo 177 trata da responsabilidade solidária dos adquirentes que operam diretamente com os contribuintes listados no artigo 176.
Contudo, o debate mais sensível surge na leitura do artigo 177, que trata da responsabilidade solidária dos adquirentes de combustíveis. Embora o caput preveja essa possibilidade, o §1º impõe limites importantes: (I) a solidariedade não se aplica em operações com split payment; (II) está limitada ao valor do tributo efetivamente não recolhido; e, mais relevante, (III) exige comprovação de que o adquirente concorreu para o inadimplemento.
Vale destacar o inteiro teor do inciso III, § 1° do art. 177: “estende-se aos demais participantes da cadeia econômica, não referidos no caput, que realizarem operações subsequentes à tributação monofásica de que trata este Capítulo, se houver comprovação de que concorreram para o não pagamento do IBS e da CBS devidos pelo contribuinte (grifos nossos).
Os “demais participantes da cadeia econômica” mencionados no §1º do art. 177 da LC nº 214/2025 referem-se aos agentes que não estão expressamente listados como contribuintes no caput do art. 176, mas que atuam em etapas posteriores à incidência monofásica do IBS e da CBS, ou seja, nas operações subsequentes à produção, formulação, importação ou refino de combustíveis. Esses agentes não são contribuintes diretos da monofásica, mas integram a cadeia econômica posterior à incidência tributária.
A exigência de comprovação para atribuição de responsabilidade é instrumento essencial para garantir segurança jurídica. A LC 214/2025 reconhece que, no regime monofásico de tributação dos combustíveis, o contribuinte é o produtor ou importador, e não o adquirente. Ao resguardar esse desenho estrutural, o art. 177 evita a criação de distorções que comprometeriam a lógica do sistema, promovendo a neutralidade da tributação — isto é, assegurando que o sistema não interfira indevidamente na dinâmica de mercado ou penalize indevidamente agentes econômicos que atuam de boa-fé.
Esse ponto é crucial: a responsabilidade solidária não é presumida. Ela depende da demonstração clara e objetiva de que o adquirente colaborou, facilitou ou se beneficiou do não pagamento do tributo. E mais: o ônus dessa comprovação é da autoridade fiscal.
Não se admite, assim, a inversão da lógica do sistema monofásico, transformando o adquirente em garantidor automático do tributo. O Fisco deve demonstrar, com base em provas concretas, a existência de um nexo de causalidade entre a conduta do adquirente e o inadimplemento tributário. Sem essa comprovação, não há espaço legítimo para imputação de responsabilidade.
Hoje, entretanto, se observam excessos que precisam ser superados à luz da nova legislação. Um exemplo marcante foi exposto pela Fecombustíveis (Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes), que alertou sobre autuações fiscais dirigidas a postos revendedores que adquiriram combustíveis de distribuidoras sob regime especial de recolhimento do ICMS.
Mesmo em operações regulares e documentadas, revendedores foram responsabilizados solidariamente pelos tributos não pagos pelas distribuidoras, ainda que não tivessem qualquer participação no inadimplemento. O simples fato de adquirir de uma empresa inadimplente foi tratado como suficiente para imputar responsabilidade, transferindo indevidamente ao adquirente o ônus da fiscalização e da arrecadação.
Esse tipo de interpretação é exatamente aquilo que a Reforma Tributária busca abandonar. No contexto da tributação monofásica dos combustíveis, o adquirente não é — nem pode ser tratado como — garantidor automático do tributo. A responsabilidade solidária, longe de ser regra, é exceção condicionada a critérios objetivos, delimitada por provas concretas e sujeita à demonstração de vínculo direto com a inadimplência.
Em um ambiente econômico complexo como o do setor de combustíveis, é essencial assegurar que o peso da carga tributária recaia sobre quem de fato está obrigado ao seu recolhimento. O adquirente não é garantidor, mas, sim, parte legítima da cadeia comercial, cujos direitos também devem ser resguardados pela legalidade e pelo devido processo.
Por tudo isso, a exigência da comprovação de que o adquirente concorreu para o inadimplemento, como prevê o inciso III, § 1° do art. 177 da LC 214/2025 deve ser celebrada também à luz do princípio da simplicidade, transparência e neutralidade (artigo 145, § 3° e artigo 156-A, § 1°, CF), inserido de forma expressa no rol dos princípios constitucionais tributários pela Emenda Constitucional nº 132/2023.
“Simplicidade indica facilidade e segurança jurídica para o contribuinte pagar seus tributos e cumprir suas obrigações acessórias, reduzindo as divergências na interpretação da legislação, que são a causa principal do contencioso tributário.
Transparência para que os contribuintes saibam quanto estão pagando de impostos, dando visibilidade à complexa relação entre direito, economia e política, de modo a empoderar o verdadeiro titular do ônus da carga tributária – o cidadão – e aprofundar o exercício da cidadania fiscal nas eleições.
Neutralidade para que a tributação sobre o consumo não crie distorções no ambiente de negócios, permitindo a eficiente alocação do investimento e prevenindo a entropia do planejamento tributário”.
É possível notar a coerência entre estes princípios e a previsão do inciso III, § 1° do art. 177 da LC 214/2025, pois ao exigir cautela, transparência e fundamento legal na imputação de responsabilidades, a Reforma Tributária inaugura uma nova era — mais estável, mais equilibrada e mais coerente com os valores de um Estado fiscal moderno e comprometido com o desenvolvimento.
A norma contribui decisivamente para a simplicidade do regime ao estabelecer um critério claro e objetivo para a responsabilização solidária, afastando interpretações discricionárias e subjetivas que gerariam litigiosidade e insegurança, uma vez que o adquirente passa a saber, com clareza, em quais hipóteses poderia ser responsabilizado.
No aspecto da transparência, o artigo reforça o direito do contribuinte de compreender o alcance de seus deveres e a lógica da estrutura tributária. A responsabilização solidária, ao ser excepcional e vinculada a provas concretas, impede que o sistema seja utilizado como mecanismo opaco de transferência de encargos tributários, reforçando a visibilidade sobre quem, de fato, arca com a carga tributária — e permitindo ao cidadão exercer, com mais consciência, sua cidadania fiscal.
O dispositivo também está alinhado com a justiça fiscal, pois impede que a responsabilidade pelo inadimplemento tributário seja transferida automaticamente a agentes que não contribuíram para o descumprimento. A justiça fiscal exige, precisamente, que os tributos sejam exigidos de quem de fato detém a capacidade contributiva e que haja proporcionalidade e razoabilidade na aplicação das sanções fiscais.
A aplicação indiscriminada da responsabilidade solidária, como se viu em práticas do passado, desvirtua esses princípios e compromete a confiança nas relações econômicas. A Lei Complementar nº 214/2025, ao consolidar o regime monofásico para a tributação de combustíveis, representa um marco de segurança jurídica para as empresas do setor. Ao condicionar a responsabilidade solidária à demonstração objetiva de que o adquirente concorreu para o inadimplemento do IBS ou da CBS, a norma rompe com a lógica histórica de autuações baseadas em presunções genéricas, subjetivas e discricionárias.
Assim, para que a Reforma Tributária concretize seus princípios estruturantes — simplicidade, transparência, neutralidade e justiça fiscal, agora expressamente previstos no texto constitucional pela Emenda nº 132/2023 —, impõe-se uma revisão profunda das práticas atualmente adotadas pelas administrações tributárias. É necessário romper com a lógica de autuações baseadas em juízos subjetivos e interpretações discricionárias, substituindo-a por um modelo pautado pela legalidade.
No âmbito do regime monofásico aplicável aos combustíveis, a imputação de responsabilidade solidária aos demais participantes da cadeia econômica somente poderá ocorrer mediante a comprovação de que esses agentes concorreram, de forma efetiva, para o inadimplemento do IBS e da CBS devidos pelo contribuinte. Essa exigência de causalidade concreta qualifica a incidência da norma e reforça a obrigação de observância estrita ao princípio da legalidade — vetor que limita a atuação fiscal e assegura a segurança jurídica na atividade econômica.
Por todos estes motivos, a Reforma Tributária exige uma mudança institucional de postura das administrações tributárias: da presunção para a prova, da arbitrariedade para a legalidade, da instabilidade para a segurança jurídica. E é justamente essa segurança jurídica — fundada em critérios objetivos, respeito às garantias constitucionais e previsibilidade na atuação estatal — que constitui o alicerce de um sistema tributário moderno, de um ambiente de negócios competitivo e, sobretudo, de uma sociedade comprometida com o Estado de Direito.
Bruna Bezerra é advogada, sócia em Heleno Torres Advogados, especialista em Direito Tributário com LL.M pelo INSPER e graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Coordenadora Executiva e Acadêmica do GT10 Combustíveis do Núcleo de Estudos Fiscais – NEF da FGV/SP.
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