
Por Heron Charneski
Conforme o texto constitucional, a instituição do novo “IVA dual” no Brasil, representado pelo Imposto sobre Bens e Serviços – IBS, de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios, e pela Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS, de competência da União, atenderá ao princípio da não-cumulatividade (art. 156-A, § 1º, VIII, c/c art. 195, § 16, da Constituição).
O Imposto sobre Valor Agregado foi amplamente implementado pelo mundo. Sua história iniciou com o trabalho de cientistas econômicos estrangeiros, tendo o imposto ingressado no direito positivo da França em 1954 (taxe sur la valeur ajoutée). Depois, irradiou-se para diversos países da Europa, da América (México e Argentina), e outros.
No Brasil, a primeira experiência com o imposto não cumulativo remonta ao IPI, em 1958 (“imposto de consumo”). Com a Emenda nº 18, de 1965, a recepção de ideias estrangeiras levou à substituição do antigo IVC, de incidência em cascata, pelo ICM. Contudo, o ICM adotou a não cumulatividade com algumas “trocas de sinais”, na expressão de Lobo Torres, em relação ao próprio modelo francês. Com a Emenda nº 33, de 2001, a não cumulatividade expandiu-se para as contribuições sociais.
Como o próprio nome indica, a essência do IVA está em tributar somente o montante agregado pelo contribuinte em cada etapa da produção. Dessa constatação decorre que a não cumulatividade é inerente a uma cadeia plurifásica de produção ou prestação. Somente em uma economia de escala faz sentido tributar o valor acrescido.
A tributação do valor agregado, de forma não cumulativa, favorece a integração horizontal da economia e busca respeitar o processo de formação de preços e circulação de riquezas no mercado. Independentemente do número de etapas e atores na cadeia, o tributo final deve corresponder à alíquota multiplicada pelo preço da última saída. A não cumulatividade, ao antecipar a arrecadação desse valor final em cada etapa, busca diminuir os impactos sobre a livre concorrência ao longo do ciclo produtivo.
Nesse particular, considero a não cumulatividade do IVA um subprincípio derivado do princípio da neutralidade, sobre o qual escrevi em outro artigo nesse Portal (link).
Para garantir a não-cumulatividade e a neutralidade do IVA na determinação da base de cálculo do imposto, foram desenvolvidos os métodos de adição e subtração.
O método de adição consiste na aplicação da alíquota sobre o somatório dos lucros auferidos em cada período. Dadas as dificuldades práticas na apuração de um imposto sobre o “valor agregado strictu sensu”, a instituição do sistema de tributação do valor adicionado repousa mais tradicionalmente em duas técnicas de subtração: a) base-contra-base, ou subtração direta, aplicando-se a alíquota sobre uma base representada pela diferença entre as vendas tributáveis e as compras tributáveis de outras empresas; e b) imposto-contra-imposto, ou subtração indireta, apurando-se o imposto pela diferença entre o imposto cobrado sobre as vendas tributáveis e o imposto pago nas importações e compras domésticas de outras empresas.
A técnica imposto-contra-imposto, ou método subtrativo indireto, é a que vem sendo utilizada nos tributos não-cumulativos no Brasil. Essa afirmação se volta particularmente ao IPI e ao ICMS, mas também ao caso das contribuições sobre a receita. No sistema das Leis nº 10.637/02 e da Lei nº 10.833/03 não há identidade de alíquotas (as alíquotas de PIS e COFINS da etapa anterior não são necessariamente as mesmas que se aplicam sobre a base de créditos), nem a subtração de bases. No caso de PIS e COFINS, ocorre uma apuração de crédito, a ser abatido do débito calculado sobre as receitas.
A técnica imposto-contra-imposto, em que a existência de um crédito tributário sobre as compras é a base da não cumulatividade, tem algumas vantagens práticas. Ao mesmo tempo, algumas críticas pesam contra o modelo.
Em primeiro lugar, esse método, quando contraposto ao da base-contra-base, facilita (ou mesmo promove) a imposição de uma diversidade de alíquotas sobre bens e serviços, que promovem distorções econômicas de toda a espécie.
Nesse pensamento, apesar das ressalvas que podem ser feitas à multiplicidade de regimes diferenciados e exceções trazidos pela Reforma Tributária do Consumo no Brasil, a técnica de imposto-contra-imposto prevista para o IBS e a CBS apresenta uma vantagem em relação ao modelo atual.
A Emenda Constitucional nº 132/2023 optou por um sistema de crédito que prevê o creditamento, pelo contribuinte sujeito ao regime regular, do imposto cobrado na etapa anterior. A exceção ao creditamento fica por conta das operações consideradas “de uso ou consumo pessoal”, tal como especificadas na Lei Complementar nº 214/2025, além das operações não tributadas por imunidade, isenção ou alíquota zero.
Uma segunda crítica que poderia ser feita ao método imposto-contra-imposto utilizado na atual não-cumulatividade brasileira diz respeito à inexistência de mecanismos rápidos, seguros e eficientes de realização de créditos acumulados dos contribuintes, quer por compensação, quer por transferência a terceiros, quer por restituição em dinheiro.
A restituição imediata do tributo pago nas etapas anteriores é uma condição de neutralidade da tributação do valor agregado, e a sua inexistência deturpa a não cumulatividade e torna o tributo um custo do negócio.
Por isso, espera-se que a previsão de apreciação de pedidos de ressarcimento de saldos credores de IBS e CBS em até 30, 60 ou 180 dias, conforme o caso (art. 39, § 3º, da Lei Complementar nº 214/25), e os mecanismos tecnológicos e de split payment previstos na Reforma Tributária, efetivamente realizem a restituição imediata do IVA-Dual.
Por fim, uma terceira crítica que poderia ser feita à técnica imposto-contra-imposto no Brasil está voltada à preferência casuística do legislador pelo “crédito físico”, em detrimento do “crédito financeiro”, para definir o tributo a ser deduzido.
O “crédito físico” limita a dedução apenas às quantias correspondentes aos tributos que incidiram anteriormente sobre as mercadorias empregadas fisicamente na industrialização ou comercialização. É uma espécie de “mínimo existencial” da não cumulatividade. Já o “crédito financeiro” amplia a dedução para todas as despesas necessárias ou relacionadas à produção do bem ou serviço.
É verdade que a não cumulatividade, como princípio jurídico a ser implementado pelo legislador ordinário, permite algumas variações quanto ao direito ao crédito. Por exemplo, no caso de bens do ativo imobilizado, existem controvérsias quanto à constitucionalidade de uma eventual proibição geral de creditamento pelo legislador ordinário, porém se aceita que esses créditos sejam autorizados de forma fracionada, como no ICMS.
Ademais, no sistema atual, é possível reconhecer a existência de três “métodos substrativos indiretos”, o que revela uma inconsistência do legislador no desenvolvimento de um conteúdo racional mínimo para a não cumulatividade. A saber:
- um mais ligado ao crédito físico, no caso do IPI;
- outro mais ligado ao crédito financeiro, no caso de PIS e COFINS, principalmente após a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acerca da interpretação do termo “insumos” como gastos “relevantes e obrigatórios”, o que representou uma extensão às hipóteses de creditamento na lei a partir do critério eminentemente físico antes adotado pelo Fisco; e
- um ainda intermediário, no caso do ICMS. Inicialmente, a não cumulatividade do imposto era mais voltada ao crédito físico. Algumas “correções legislativas” na Lei Complementar nº 87/96 aproximaram mais o imposto do crédito financeiro, tais como: a previsão de créditos sobre ativo fixo e de bens de uso e consumo, embora constantemente prorrogados; o direito ao transporte de créditos não utilizados para competência subsequentes; e o direito à transferência de saldos acumulados nas exportações. Ao mesmo tempo, a revelar que ainda não existe um sistema real de crédito financeiro, nota-se que na jurisprudência ainda se discute se o creditamento de ICMS incidente sobre a aquisição de produtos intermediários empregados no processo produtivo, mesmo na vigência da Lei Complementar nº 87/96, depende ou não da comprovação de seu consumo imediato e integral, além da integração física ao produto final.
Ou seja, quanto à não cumulatividade, assistimos no atual sistema tributário brasileiro a um desenvolvimento casuístico da técnica imposto-contra-imposto, o que opera contra a simplicidade, a eficiência e a segurança jurídica do próprio sentido.
Sob esse aspecto, é salutar a promessa legislativa do IVA-Dual de garantir uma não cumulatividade mais plena. Os créditos do IBS e da CBS não estão limitados ao crédito “físico” ou à aquisições de insumos e produtos intermediários definidos com base na essencialidade e relevância. Estende-se o creditamento ainda às aquisições de bens do ativo fixo e adquiridos para uso e consumo na atividade econômica, como material administrativo e energia elétrica, desde que não recaiam nas exceções.
É até natural que nos meandros da legislação possam surgir controvérsias que de alguma forma venham a reduzir essa esperada abrangência. Um ponto de possível discussão é a delimitação do crédito, na Lei Complementar nº 214/25, aos tributos efetivamente “extintos” ou “pagos” nas operações em que o contribuinte seja adquirente ou importador (arts. 47 e 78), quando a Constituição alude apenas aos tributos “cobrados”. Outro ponto de potenciais polêmicas é a natureza exemplificativa dos bens e serviços considerados como de uso ou consumo pessoal, e que impedem o creditamento (art. 57).
Não obstante, a inegável ampliação das compras de bens e serviços aptas a gerar créditos de IBS e da CBS, ancorada na harmonização legislativa das regras concessivas do crédito (hoje dispersas em três regimes peculiares – IPI, ICMS e PIS e COFINS), representam avanços para a melhor realização do princípio da não cumulatividade, pela técnica “imposto-contra-imposto”, no novo sistema.
A costura de roupas novas a partir do reaproveitamento de peças existentes pode não levar ao resultado ideal. Em contrapartida, o processo de desconstrução pode servir de aprendizado. Saber como a roupa dos tributos atuais foi feita, picotada e desgastada pelo uso é importante para a maior precisão no corte e na costura dos novos tributos.
Heron Charneski. Doutor e Mestre em Direito Tributário (USP), Mestre em Direito Comercial Internacional (University of California, Davis). Advogado e Contador. Presidente do Instituto de Gestão Empresarial de Tributos (IGET) e Sócio-Administrador do Charneski Advogados
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