
Quando o tema é Reforma Tributária, é fato de que não faltam opiniões. Aliás, em um país tão marcado por distorções históricas na forma de arrecadação e por um sistema que, muitas vezes, penaliza seus consumidores mais assíduos, era de se esperar que toda proposta de mudança viesse acompanhada de embates intensos. E um dos pontos mais polêmicos da atual discussão é o chamado Imposto Seletivo. A reflexão de hoje é: afinal, será que estamos diante de um instrumento de justiça fiscal ou de mais uma carga repassada ao consumidor?
Entretanto, antes de partir para a principal reflexão, vale entender primeiramente o que está em jogo. O Imposto Seletivo (IS) surge como uma forma de desestimular o consumo de produtos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, como cigarros, bebidas alcoólicas e, eventualmente, combustíveis fósseis. A proposta, em teoria, é clara: tributar mais o que faz mal. Parece simples, não é? Mas como tudo no universo tributário, temos algo por trás. Sob o verniz da regulação do consumo e da promoção de comportamentos “mais saudáveis”, existe um pano de fundo que exige uma uma análise crítica muito maior e não somente de minha parte, mas de todos os cidadãos. Não é de hoje que certos setores da economia são alvos fáceis para políticas arrecadatórias. Afinal, é mais palatável tributar algo que já possui uma imagem negativa socialmente do que enfrentar o debate sobre isenções setoriais ou a redistribuição de carga entre os diferentes extratos de renda.
E é justamente aqui que mora a complexidade. O discurso do bem-estar pode, por vezes, servir de escudo para medidas que, embora revestidas de boa intenção, acabam incidindo com mais força sobre camadas da população que já lidam com uma elevada carga tributária no seu cotidiano. Grupos que não estão necessariamente em situação de vulnerabilidade extrema, mas que também não possuem mecanismos reais de proteção diante de aumentos constantes no custo de vida. Na prática, essas pessoas são frequentemente levadas a arcar com ajustes fiscais que não enfrentam as distorções estruturais do sistema, mas sim se apoiam no consumo como ferramenta de arrecadação. A justificativa? Justiça social. Mas será que, ao olhar com atenção, estamos mesmo distribuindo o peso de maneira justa? Se o objetivo é corrigir desigualdades, é preciso cautela para que isso não aconteça às custas de quem já carrega uma parte significativa da engrenagem tributária. A equidade precisa ser construída com consistência técnica, sensibilidade e responsabilidade, e não apenas com discursos “bem-intencionados”.
Embora com nome novo, o Imposto Seletivo não é exatamente uma inovação. Na verdade, ele substitui o antigo IPI em parte das suas funções regulatórias e arrecadatórias. A diferença é que, agora, ele ganha protagonismo em um novo arcabouço que promete simplificação e eficiência. Mas será que, sob essa nova estrutura, o imposto realmente cumpre seu papel? A pergunta que precisa ser feita é: quem paga a conta? E mais: qual é o impacto real dessa tributação no comportamento do consumidor e na arrecadação do Estado?
Em muitos casos, o que se observa é que o Imposto Seletivo não elimina o consumo dos produtos visados, apenas o torna mais caro para quem já está na base da pirâmide e para quem sustenta essa base. O impacto no comportamento é limitado, mas o peso financeiro é imediato. E quando esse encarecimento ocorre de forma arrecadatória e indiscriminada, sem um equilíbrio entre a regulação e a acessibilidade, se cria um terreno fertil para o mercado ilícito avançar cada vez mais. Produtos não regulados e não tributados passam a ocupar espaço, muitas vezes sendo a única alternativa viável para parcelas da população. E o grande problema está aí. Além desses produtos serem mais nocivos à saúde, eles alimentam redes paralelas de distribuição e sustentam financeiramente o crime organizado. Ou seja, uma política que pretende proteger pode acabar, sem querer, fortalecendo estruturas que colocam em risco tanto o consumidor quanto a ordem social.
Claro, é inegável que instrumentos de regulação tributária são válidos. Diversos países – como França, Suécia, Japão e outros – já utilizam esse tipo de imposto para incentivar comportamentos considerados mais saudáveis ou sustentáveis. No entanto, o sucesso desse tipo de estratégia depende diretamente da forma como ela é implementada. E aqui no Brasil, convenhamos, não são raros os casos em que boas ideias se perdem na burocracia ou se distorcem por interesses políticos e pressões setoriais. Se não houver um planejamento sólido, com diretrizes claras e foco na educação do consumidor, o Imposto Seletivo corre o risco de virar só mais um imposto com discurso bonito, mas pouco efetivo.
Nos últimos anos, fala-se muito em justiça fiscal, mas ela é um conceito que precisa ser tratado com mais profundidade. Afinal, justiça fiscal não é apenas cobrar mais de quem pode pagar mais. É também não penalizar indiretamente quem já enfrenta dificuldades e, muitas vezes, está arcando com responsabilidades além do tolerável. Nesse contexto, a seleção dos produtos a serem tributados precisa ser transparente, técnica e baseada em evidências. Não se pode permitir que o imposto se torne uma ferramenta de julgamento moral do consumo popular ou, pior ainda, um instrumento para reforçar desigualdades disfarçado de política de saúde pública.
Aliás, vale lembrar: às vezes, o mesmo produto pode representar coisas muito diferentes para pessoas em realidades distintas. Ou seja, o que é considerado supérfluo por alguns pode ser um pequeno prazer acessível para outros. É nesse ponto que a empatia precisa entrar na equação fiscal.
E enquanto profissionais da área, nós, tributaristas, temos um papel que vai muito além da interpretação da legislação ou do cálculo correto dos tributos. Somos agentes que podem (e devem) contribuir para um sistema mais justo, equilibrado e coerente com a realidade do país. Portanto, quando olhamos para o Imposto Seletivo, precisamos ir além da letra fria da lei. Precisamos questionar a eficiência, mas também a intencionalidade. Precisamos avaliar o impacto na arrecadação, mas também nas relações sociais. Mais do que nunca, é crucial que nossa voz esteja presente nesse debate. E que ela seja firme, técnica, mas também humana.
Mas a discussão sobre o Imposto Seletivo não está encerrada. Pelo contrário, ela está apenas começando. E talvez, mais importante do que definir se ele é bom ou ruim, seja garantir que ele seja justo, coerente e eficiente. Para isso, não basta aplicar o que já foi feito lá fora, sem considerar as especificidades brasileiras. Não basta embalar a proposta com discursos modernos. É preciso profundidade, escuta e claro, muita responsabilidade.
Afinal, o sistema tributário que queremos construir deve ser mais do que eficaz na arrecadação. Ele precisa fazer sentido para quem paga a conta.
Diogo Thaler do Valle é advogado, contador e especialista em tributos e estratégia empresarial. Com uma trajetória consolidada e quase duas décadas atuando em grandes corporações é fundador do Power Tax Brasil e atualmente ocupa o cargo de Diretor Tributário da Philip Morris Brasil, liderando iniciativas fiscais e tributárias locais e internacionais. Possui passagem por empresas de consultoria e auditoria, Ernst & Young, onde acumulou vasta experiência na área fiscal, assessorando companhias de diferentes segmentos em desafios tributários complexos.
Os artigos escritos pelos “colunistas” não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.