
Por Danilo Leal
Em meu 1º artigo para o Portal da Reforma Tributária “Tributo – O poder oculto que molda a história, a sociedade e a sua vida”, o qual convido a ler caso ainda não o tenha feito, analisei o papel histórico do tributo como um motor das grandes transformações sociais e políticas, influenciando diretamente comportamentos e relações na sociedade.
Naquele artigo, eu o convidei para uma reflexão sobre o impacto da reforma tributária sobre a mudança de comportamento social nos anos que ainda estão por vir. A provocação exata foi “qual será o seu efeito prático para além das questões financeiras? Será que veremos mudanças concretas em nossa sociedade, como muitas vezes ocorreram ao longo da história? Você acredita que essa reforma mudará o famoso “jeitinho brasileiro” de muitas empresas? Ou quem sabe até a famosa “Lei de Gerson”? Durma com esse incômodo e vamos trocar nossas percepções em nosso próximo encontro nessa coluna.”
Pois bem! Aqui estamos de volta para esse diálogo! Confesso que refleti sobre o tema com abstração e sem alguma ideia fixa sobre esses impactos, com o objetivo de identificar potenciais mudanças de comportamentos. Vamos lá!
Sonegação fiscal e split payment: O primeiro aspecto que certamente vem à mente de todos nós ao pensarmos sobre o tema é se a reforma, em especial pela implementação do “split payment”, vai diminuir a sonegação fiscal ao ponto de quem sabe mudar a conduta de muitas pessoas que veem com certa naturalidade atos de sonegação. Certa vez, ouvi uma pessoa dizer, em um momento de fúria em razão de uma autuação fiscal – injusta em certa medida é verdade – que “o direito à sonegação deveria ser assegurado pela Constituição Federal!”. Emoções e paixões deixadas de lado, inúmeros são os casos sonegação pelos mais simulados instrumentos, como é o caso de empresas fantasmas que são abertas exclusivamente com o objetivo de emissão de notas fiscais para gerar créditos tributários para empresas que se passam por adquirentes de insumos que jamais são realmente adquiridos.
Acredito que a instituição de um mecanismo como o split payment, por mais que possa ser um instituto passível de inúmeras críticas com as quais, inclusive, concordo com grande parcela, dada a grande digitalização do nosso sistema financeiro, deve resultar em novos costumes, uma vez que a existência de uma “retenção” sobre os valores transacionados por meio do split payment deve reduzir bastante as tentativas de sonegação.
IVA e cidadania fiscal: já há algum tempo, desde 2013 mais precisamente, as empresas são obrigadas a informar a carga tributária em documento fiscal. Sabemos, no entanto, o quão inócua tem sido a regra atual por “n” razões que não pretendo explorar aqui. Com o novo regime tributário, temos uma chance maior de dar conhecimento às pessoas acerca da carga tributária efetiva incidente nos produtos e talvez essa possa ser a pedra fundamental de uma maior compreensão e conscientização acerca dos direitos das pessoas sobre os recursos arrecadados. Em um mundo ideal, gostaria que essa fosse a pedra fundamental para a inclusão de matérias sobre tributação, finanças e direito constitucional no currículo obrigatório da educação de jovens.
Conscientização das relações trabalhistas: a complexidade tributária brasileira é frequentemente apontada como um fator que incentiva a informalidade. Empresas de menor porte, especialmente, recorrem à informalidade para reduzir custos administrativos e tributários. Ao longo dos anos, com base nesse “argumento”, houve uma “normalização” e até mesmo aceite moral por grande parcela da sociedade – em especial nos trabalhos que exigem menor qualificação profissional – de relação de trabalho sem vínculos formais.
Caso a simplificação prometida pela reforma, de fato, se concretize, não seria impossível acreditar que, no longo prazo, um ambiente mais favorável à formalização resultaria em um maior cumprimento das obrigações legais trabalhistas e um diferente costume social acerca do tema.
Mudanças de padrões de consumo: a instituição de um novo regime tributário pode resultar em aumento e redução de preços a médio prazo, alterando a relação custo-benefício entre produtos e serviços. Em mercados internacionais, nos quais há instituição de IVA, observa-se um fenômeno interessante no qual consumidores tendem a priorizar a aquisição de produtos e exercitarem o “faça você mesmo” no que tange a muitos serviços.
Um conhecido exemplo é o mercado norte-americano no qual comumente pessoas executam atividades sem a contratação de profissionais especializados. Essa cultura, para além de outros fatores, é influenciada por um alto custo na contratação de mão de obra no país, bem como pela carga tributária incidente, a qual em diversos estados é maior que a incidente em produtos.
No Brasil, essa mudança poderia gerar impactos significativos. Se produtos industrializados se tornarem mais acessíveis em comparação a serviços, poderemos ver uma expansão no consumo de bens em detrimento a um ajuste na contratação de serviços. Com o tempo, poderá nascer uma nova cultura parecida com a de outros países com a importação do “do it yourself”.
Incentivo ao consumo consciente: a criação do Imposto Seletivo incidente sobre produtos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente surge como uma oportunidade de influenciar hábitos de consumo. A depender da forma como for efetivamente instituído, bem como da carga aplicável, acredito que podemos assistir a uma mudança no padrão de consumo, em especial no que tange ao consumo de produtos nocivos à saúde, em razão desse tributo.
Ainda que essa não seja uma abordagem nova, com uma maior transparência tributária podemos ver uma mudança na cultura de longo prazo. A França, por exemplo, adotou uma maior carga tributária sobre alimentos nocivos e o país ocupa apenas o 87º lugar no ranking de obesidade mundial na “World Fact Book”. Certamente, a instituição do tributo por si só não mudará hábitos, mas pode ser um fator influenciador em um país como o nosso, no qual 55% da população já enfrenta algum sobrepeso, conforme dados da Associação Brasileira para Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica. Por que não usarmos a reforma como motor da condução de uma alimentação mais saudável em detrimento da crescente “junk food”?
Neutralidade e consumo seletivo: conforme artigo 2º do próprio PLP 68, o IBS e a CBS devem ser “informados pelo princípio da neutralidade, segundo o qual esses tributos devem evitar distorcer as decisões de consumo”. A definição de neutralidade pode ser explorada por várias perspectivas, como equidade entre a forma de venda (i.e, comércio eletrônico ou convencional), equidade entre contribuintes em situações semelhantes, dentre outras situações exploradas no “International VAT/GST Guidelines”, publicado pela OCDE. Para a minha crítica, no entanto, quero explorar o consumo de produtos semelhantes. Isso porque, acredito que há uma falha no projeto que irá distorcer e influenciar sobremaneira o consumo de determinados produtos afrontando o princípio da neutralidade.
Para pegar apenas um exemplo e, ainda em linha com itens alimentícios, se considerarmos o tratamento aplicável ao feijão que foi incluído na lista da Cesta Básica passível de alíquota zero, fica evidente a falta de neutralidade quando comparado a outros produtos de mesma natureza. Por mais que o feijão seja um símbolo da alimentação brasileira, por que não aplicamos o mesmo tratamento a outras leguminosas como é o caso da lentilha, ervilha, grão-de-bico e soja em grão? Para lá de não respeitarmos o princípio da neutralidade, acredito que perdermos uma oportunidade grande de ampliar o rol de produtos de mesma natureza que poderiam gozar de mesmo tratamento tributário com ganhos sociais de longo prazo importantes.
E para encerrar minha reflexão, acredito que a reforma tributária seja muito mais do que uma questão de arrecadação ou simplificação do regime atual. Na verdade, ela carrega o potencial de redefinir valores e comportamentos em nossa sociedade.
O convite para esta reflexão continua: como você acredita que essas transformações podem se materializar na sua vida, na sua empresa ou na sua comunidade? Mais do que um instrumento financeiro, o tributo é também um agente de cidadania e progresso. E é com essa perspectiva que devemos encarar as reformas que estão por vir.
Danilo Leal é sócio-conselheiro da /asbz. Atua na área tributária. Tem pós-graduação em direito tributário pelo IBDT (Instituto Brasileiro de Direito Tributário) e graduação pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
Este artigo foi publicado com exclusividade na 2ª edição da Revista da Reforma Tributária. Adquira seu exemplar aqui.
Os artigos escritos pelos colunistas não refletem necessariamente a opinião do Portal da Reforma Tributária. Os textos visam promover o debate sobre temas relevantes para o país.